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terça-feira, 9 de julho de 2013

Allan Kardec foi um druída?

 José Carlos Ferreira Fernandes - Obras Psicografadas


É de conhecimento geral que, a partir da publicação de “O Livro dos Espíritos”, em 1857, o professor Hippolyte Léon Denizard Rivail tomou o pseudônimo de Allan Kardec.  Tal pseudônimo seria mantido ao longo de todo o restante da sua vida, de modo a se poder separar, nitidamente, em sua biografia, a “fase Rivail” do professor e a “fase Kardec” do líder e codificador do Espiritismo reencarnacionista cíclico evolutivo.
Segundo é usual na historiografia espírita kardecista tradicional, informa-se que o pseudônimo “Allan Kardec” foi aposto a Rivail por decisão do mundo espiritual (mais especialmente, segundo a narrativa mais divulgada, pelo espírito que se denominava “Zéfiro”), não sendo, assim, de sua própria e livre escolha.  Tal pseudônimo, na realidade, seria o nome que Rivail, numa encarnação passada, na qual ele teria vivido, como sacerdote celta (druida) na região da Armórica, na Gália (a atual península da Bretanha, ao norte da França), antes da conquista romana.
O presente trabalho dedica-se a pesquisar todas as circunstâncias ligadas ao pseudônimo “Allan Kardec”, visando responder a duas perguntas:
·        O nome “Allan Kardec” pode ser considerado, de fato, como um nome celta viável na sociedade gaulesa imediatamente anterior à conquista romana? 
·        Quais as circunstâncias efetivas que levaram o professor Rivail a adotar o pseudônimo “Allan Kardec”?
Assim sendo, inicialmente será efetuada uma análise filológica (despretensiosa que seja) acerca do nome “Allan Kardec” (mais especificamente, de suas duas partes constituintes, “Allan” e “Kardec”); a seguir, serão examinados os mais antigos testemunhos históricos ainda disponíveis, e que puderam chegar ao conhecimento deste autor, acerca das circunstâncias nas quais o professor Rivail passou a adotar o “nom de plume” de Allan Kardec.  Quanto a isso, foram, basicamente, quatro: a) as notas biográficas que constam no “Prefácio” da tradução, para a língua inglesa, de “O Livro dos Espíritos”, efetuada por Anna Blackwell (1874-75); b) o depoimento do Conselheiro Aksakov, publicado no periódico espírita inglês “The Spiritualist” em 1875 (bem como as réplicas da própria Anna Blackwell e de Pierre- Gaëtan Leymarie, igualmente publicados no mesmo periódico); c) uma citação no periódico espírita francês “Le Spiritisme”, de Gabriel Delanne, em 1888; d) a conferência pronunciada por Henri Sausse em Lião, aos 31 de março de 1896, por ocasião das celebrações do 27º aniversário da morte de Kardec. 
Tais são, de fato, as fontes mais antigas às quais o autor deste trabalho pôde ter acesso.  Haveria outras fontes, pretensamente remontando ao punho do próprio Kardec, às quais o pesquisador espírita Canuto Abreu teria tido acesso, mas que, de qualquer modo, não estariam mais disponíveis.  Não havendo como verificá-las, serão devidamente citadas, mas não computadas no elenco acima. 
Apesar das várias contradições, o estudo de todos esses testemunhos pode, ao menos em linhas gerais, mostrar um inequívoco processo de “embelezamento”, e, mesmo, de “construção” duma tradição. 
Assim, passa-se, a partir de agora, à apresentação de todas as evidências que puderam ser colhidas. 
“Allan Kardec” como um nome “celta”, ou, mais especificamente, “gaulês”: 
O conjunto “Allan Kardec” (ou, mais precisamente, “Alan Kardec”), na forma de nome (prenome) e de apelido (nome de família), mostra-se como perfeitamente coerente e possível (talvez com algumas pequenas modificações, que logo serão mencionadas), modernamente, para um homem, na região francesa da Bretanha. [...] “Druidas”, “reencarnação”, “megálitos” e “celtas” eram, na época, conceitos intimamente interligados, ao menos ao nível da imaginação romântica – e localizados no conveniente cenário da Bretanha, isto é, da antiga Armórica[1].  Não é de se estranhar, portanto, que o nome “Allan Kardec” acabasse por evocar druidas na Armórica, sábios filósofos reencarnacionistas.  A questão é: tal ligação apresenta-se como razoável?
Como foi comentado no início, “Allan Kardec” (ou, mais corretamente, “Alan Kardec”) é um nome bretão moderno viável.  “Alan” (como é grafado em bretão; o correspondente francês é “Alain”) é um nome (prenome, primeiro nome) muito utilizado na Bretanha, e “Kardec” (com a grafia usual “Caradec”, e as variantes “Caradeg”, “Karadeg”, “Carantec” e “Karadog”, entre outras) era originariamente também um nome (prenome, primeiro nome), e, nos tempos modernos, na Bretanha, um apelido (i.e., um sobrenome, um nome de família).  De fato, alguns poucos exemplos contemporâneos do uso do sobrenome “Caradec” em franceses de origem bretã encontram-se em François Caradec (1924-2008), escritor e biógrafo, em Jean-Michel Caradec (1946-1981), cantor, e em Loïc Caradec (1948-1986), navegador. 
O nome (prenome, primeiro nome) “Alan” (como grafado, com um único “l”, no bretão “padrão”) tem correspondência dialetal, na própria Bretanha, em formas como “Lan”, “Alanig” ou “Lanig”, bem como com “Alun”, constatado no país de Gales, e “Ailin” na Irlanda.  Em todas essas variantes, a palavra significa “gamo”, ou “veado”. 
A popularidade de “Alan” na Bretanha (e, depois, em sua forma “Alain” em língua francesa, por todo o país) liga-se à devoção (inicialmente local, mas que paulatinamente se foi espalhando) a Santo Alan (Alanus, ou esporadicamente Ailanus, como grafado em latim), bispo de Quimper, na Bretanha, uma figura um tanto obscura, mas que viveu entre os fins do séc. VI e inícios do séc. VII dC.  Desse modo, embora “Alan” seja, de fato, um nome “celta”, seu uso na Gália na época pré-romana é, no mínimo, problemático, já que a forma “Alan” (e correlatos), bem como a popularização de seu uso, são bem posteriores – pertencem ao mundo bretão medieval, não ao mundo gaulês pré-romano; dizer que havia, assim, na Armórica gaulesa pré-romana uma pessoa denominada “Alan” é algo, na melhor das hipóteses, extremamente improvável. 
Isso quanto a “Alan”.  Examinando-se agora “Kardec”, nota-se, como já mencionado, que era originariamente um nome (prenome, primeiro nome), tal como “Alan”, e que, modernamente, na Bretanha, é um apelido (um nome de família, um sobrenome).  Mas a sua história, e a sua atestação, é bem antiga, e pode, sim, ligar-se a genuínas raízes “gaulesas”.  Todas as formas atuais (“Caradec”, “Caradeg”, “Karadeg”, “Carantec”, “Karadog”, etc.) remontam ao nome (prenome) gaulês, atestado tanto na Gália quanto na Britânia, “Caratacos” (em latim, Caratacus), ou, aportuguesadamente, Carataco. 
O “Carataco” mais conhecido foi o rei da tribo britânica dos Catuvelaunos.  Era filho do rei Cunobelino (o “Cimbelino” de Shakespeare), e, com a ajuda de seu irmão Togodumno, atacou e derrotou Vérica, rei dos Atrébates, tomando-lhe o reino.  Mas Vérica refugiou-se em Roma, onde obteve a ajuda do Imperador Cláudio (reinou 41-54 dC) para recuperar seu reino – e assim iniciou-se a invasão romana da Britânia, em 43 dC.  Derrotado ainda nesse ano pelos exércitos romanos, Carataco refugiou-se entre os Sílures, iniciando nova onda de ataques aos romanos, à testa dos Sílures e dos Ordóvicos, a partir de 49 dC.  Novamente vencido, procurou asilo junto a Cartimândua, rainha dos Brigantes, que, porém, acabou entregando seu incômodo hóspede aos romanos.  Enviado a Roma, adornou o triunfo de Cláudio em 51 dC; não obstante, o Imperador o poupou, impressionado com o comentário que, mesmo derrotado, agrilhoado e exibido como troféu, Carataco lhe dirigiu (“Se vós decidistes dominar o mundo, é isso motivo suficiente para que o mundo automaticamente se vos submeta?”), mantendo-o como uma espécie de hóspede (ou prisioneiro), com todo o conforto, na Cidade Eterna – ele, porém, jamais retornaria a sua ilha natal. 
Além dum nome atestado na Britânia na primeira metade do séc. I dC, “Carataco” é também atestado na Gália, mais precisamente em três inscrições tumulares (provavelmente dos fins do séc. I aC ou dos inícios do séc. I dC) na região de Saverne, na Alsácia (próxima à fronteira alemã). Assim, as origens “gaulesas” do nome Kardec são impecáveis – sua forma “gaulesa” original, Carataco, é atestada, entre o final do séc. I aC e os meados do séc. I dC, tanto na Gália quanto na Britânia.  Note-se, contudo, que é atestado como um prenome, não como um nome de família, o que, aliás, inexistia entre os gauleses. 
Mais ainda, a popularidade de seu uso, na Bretanha tanto quanto em Gales, liga-se principalmente a três santos que, na Idade Média, ostentaram esse nome. 
Assim, embora “Kardec” (“Caradec”) seja, de fato, um nome que pode ser rastreado até à forma gaulesa (atestada tanto na Gália quanto na Britânia) “Carataco”, não se pode admitir que, com o nome “Kardec” (ou “Caradec”, ou qualquer de suas variantes recentes), tenha existido alguém, na Armórica, antes da conquista romana.  O nome de tal pessoa seria Carataco (“Caratacos”), não “Kardec”; não há sentido algum para que os “espíritos” tenham informado o nome gaulês duma (pretensa) encarnação anterior do professor Rivail não como se escrevia (e pronunciava) à época (“Caratacos”), mas sim numa variante de sua forma bretã (“Kardec”), que se formou muitos séculos depois… 
Adicionalmente, não se pode admitir que tenha existido um “Alan Kardec” (ou mesmo um “Alan Caratacos”) na Armórica gaulesa, pois a forma “Alan Kardec” trai uma composição recente (nome + apelido, ou prenome + sobrenome) que inexistia entre os gauleses.  De fato, os gauleses tinham apenas um único nome, geralmente seguido dum patronímico, como os gregos (“Fulano, filho de Beltrano”).  Assim, p.ex., “Carataco, filho de Cunobelino” (para o rei dos Catuvelaunos), ou “Carataco, filho de Carato” (para uma das inscrições de Saverne).  A composição “Alan Kardec”, por conseguinte, é duplamente impossível para um (pretenso) gaulês (druida ou não) que tivesse vivido na Armórica (atual Bretanha), ou mesmo em qualquer outro lugar, antes da conquista romana (ou mesmo depois, enquanto houve um meio cultural gaulês sobrevivente): 
·        Porque os elementos formadores do nome (“Alan” e “Kardec”) encontram-se numa forma moderna, embora céltica (e note-se que, embora “Kardec” derive dum nome gaulês viável, “Carataco”, o mesmo não se pode dizer, com segurança, para “Alan”); 
·        E porque tais elementos formadores apresentam-se quer como nome + sobrenome, quer como nome composto.  Ora, entre os gauleses históricos, não havia sobrenomes, e nem nomes compostos. 
Assim sendo, é extremamente problemático, para se dizer o mínimo, admitir que a combinação “Alan Kardec” pudesse ter sido utilizada como um nome gaulês (druídico ou não), portado por alguém na Armórica anterior à conquista romana. 
A Razão do Pseudônimo – As Fontes Espíritas Disponíveis: 
Por conseguinte, tanto a consideração de “Al(l)an Kardec” como um nome “gaulês” quanto a própria ligação (fixada pelo formato do túmulo do Codificador) duma pretensa “vida passada gaulesa” do professor Rivail com monumentos megalíticos são extremamente problemáticas.  A partir de agora, continuando na presente investigação, serão analisadas as fontes mais antigas, de conhecimento do autor deste trabalho, que forneçam alguma justificativa para o “nom de plume” “Allan Kardec”.  Como já mencionado, podem ser tomadas como quatro, e serão apresentadas a partir de agora. 
As Notas Biográficas de Anna Blackwell (1874-1875): 
Cronologicamente, a primeira referência segura acerca da origem do pseudônimo “Allan Kardec” consta no “Prefácio” da tradução para a língua inglesa de “O Livro dos Espíritos”, de 1875[2].  A obra foi traduzida pela inglesa Anna Blackwell, uma das poucas pessoas do outro lado do Canal da Mancha que eram adeptas do Espiritismo reencarnacionista kardecista, e não do Espiritismo não-reencarnacionista da escola anglo-saxã.  Blackwell informa que o pseudônimo foi imposto a Kardec pelos próprios espíritos, e, em nota de rodapé, acrescenta que “Allan Kardec” era um antigo nome bretão em uso na família da mãe de Kardec (que seria, assim, de origem bretã). 
As Investigações do Conselheiro Aksakov (1875): 
A próxima referência à origem do pseudônimo “Allan Kardec”, da mesma época que a anterior (embora uns meses mais recente), refere-se aos dados coligidos pelo investigador espírita (da corrente anglo-saxã) russo, Alexandre Aksakov.  Seu depoimento consta num artigo, com os resultados de sua pesquisa acerca das origens do Espiritismo reencarnacionista cíclico na França, publicado na edição de 13 de agosto de 1875 do periódico londrino “The Spiritualist Newspaper” (era uma publicação ligada ao Espiritismo da escola anglo-saxã, não reencarnacionista, ou seja, ao “New Spiritualism” propriamente dito; o próprio Aksakov era adepto dessa corrente).  Esse depoimento geraria duas réplicas, publicadas no mesmo periódico: uma de Anna Blackwell (na edição de 27 de agosto de 1875) e outra de Pierre-Gaëtan Leymarie (na de 8 de outubro de 1875).  Nessa mesma última edição do “The Spiritualist” (i.e., de 8 de outubro de 1875) o referido periódico publicaria também uma avaliação crítica d’ “O Livro dos Espíritos”, versando, em geral, sobre quão científica poderia ser considerada a metodologia de Kardec, bem como sobre a evidência experimental efetivamente existente para se admitir o reencarnacionismo. 
Como o presente estudo se concentra nas investigações referentes ao pseudônimo “Allan Kardec”, e como tanto as réplicas ao artigo de Aksakov quanto a crítica a “O Livro dos Espíritos” não tocam nesse assunto (a não ser uma alusão bastante casual no artigo de Leymarie, que é aqui citada), tais textos não foram incluídos no presente estudo, embora tenham sido disponibilizados, tais como republicados (em cinco edições) pelo periódico de linha espírita anglo-saxã “online” “Psypioneer Journal”, entre novembro de 2008 e abril de 2009. 
 
A seguir, os trechos julgados pertinentes do artigo de Aksakov: 
Como ele [Kardec] também estava ligado a um periódico importante, o “L’Univers”, publicou seu livro com os nomes que havia assumido em suas duas existências anteriores.  Um desses nomes foi Allan (um fato revelado a ele pela sra. Japhet), e o outro, Kardec, pelo médium Roze. 
Na resposta de Anna Blackwell a esse artigo de Aksakov, ela não alude a nada referente à origem do nome Kardec, mas, incidentalmente, reforça o fato de que os dados biográficos que fez constar no prefácio à sua tradução de “O Livro dos Espíritos” eram fidedignos: originavam-se tanto de suas próprias memórias quanto de averiguações efetuadas junto à viúva de Kardec, bem como junto a “seus amigos mais íntimos” (ao contrário de Aksakov, o qual, além de não ter convivido nem com Kardec e nem com seus amigos, havia se valido apenas das declarações da ressentida Celina Japhet). 
A réplica de Leymarie, por sua vez, inclui uma série de dados biográficos de Kardec, muitos já repetidos anteriormente, ao lado de outros novos.  Nada diz especificamente acerca da origem do pseudônimo, mencionando-o quase ao acaso, como uma simples escolha (embora uma escolha ditada pelos espíritos), ou melhor, um costume usual entre escritores, na França (bem indiretamente, ao longo de sua apresentação, Leymarie obliquamente dá a entender também, como motivo da adoção dum pseudônimo, a conveniência de Rivail de segregar seus novos trabalhos de índole espírita, sob o “nom de plume” Kardec, de seus antigos trabalhos pedagógicos, já publicados sob seu nome real): 
O sr. Rivail de modo algum desprezou seu nome de família, aliás muito respeitável; mas, na França, é habitual para os escritores, ao se apresentarem ao público, assinar seus trabalhos sob pseudônimo. Foram seus amigos e guias espirituais que lhe deram o [pseudônimo] que agora ostenta tamanha reputação mundial; e foram também seus guias espirituais que o instruíram a publicar “O Livro dos Espíritos”, e ele de fato assim procedeu, mesmo diante da exigüidade de seus próprios recursos financeiros. 
Nota Constante no “Le Spiritisme” (1888): 
A próxima indicação, cronologicamente falando, acerca da origem do pseudônimo “Allan Kardec”, e a primeira que se mostra razoavelmente em concordância com a versão atualmente esposada, de modo usual, pelo movimento espírita, consta numa edição, do ano de 1888, do periódico quinzenal espírita “Le Spiritisme”. 
O referido periódico (que circulou em Paris entre 1883 e 1895) havia sido criado por Gabriel Delanne, como manifestação de uma das várias dissidências do movimento espírita originário, que ainda orbitava, talvez de modo excessivamente centralizado, em torno da figura de Pierre-Gaëtan Leymarie (cuja liderança vinha sendo crescentemente contestada desde os finais da década de 1870).  Numa edição de 1888, o “Le Spiritisme” informou explicitamente que o pseudônimo “Allan Karde” havia sido imposto a Rivail por parte dum espírito que se identificava como “Zéfiro”, no círculo mediúnico das srtas. Baudin, imediatamente antes da publicação da primeira edição de “O Livro dos Espíritos”, em 1857.  Ao mesmo tempo em que apoiava plenamente a intenção de Rivail de lançar, em livro, e de forma ordenada, o conteúdo doutrinário que os “espíritos” lhe vinham passando, “Zéfiro” lhe impunha o uso do nome “Allan Kardec”, informando, adicionalmente, que tal denominação já havia inclusive pertencido outrora a Rivail, numa encarnação passada, na “velha Armórica”, i.e., na época gaulesa: 
“Tomarás [disse “Zéfiro”] o nome ‘Allan Kardec’, que agora te damos.  Não temas, ele te pertence, já que o portaste com distinção numa encarnação anterior, quando vivias na velha Armórica”[3].

Esse é, assim, o primeiro testemunho datado (ao menos, que tenha chegado ao conhecimento do autor deste trabalho) que, inequivocamente, informa ter sido “Allan Kardec” (e, especificamente, esse conjunto de dois nomes) a identificação de Rivail numa encarnação gaulesa passada, “na velha Armórica”. 
A Biografia de Kardec, da autoria de Henri Sausse (1896): 
O último testemunho (cronologicamente falando) que pode vir a informar algo em primeira mão acerca da origem do pseudônimo “Allan Kardec”, bem como a respeito das circunstâncias nas quais ele foi assumido pelo professor Rivail, encontra-se na biografia de Kardec, de autoria de Henri Sausse[4], pronunciada como conferência na cidade de Lião, diante da Federação Espírita Lionesa, aos 13 de março de 1896, por ocasião das festividades de celebração do 27º aniversário da morte do Codificador. 
Na sua biografia, Sausse lançou mão, como inclusive será visto nos trechos aqui selecionados, de material que havia sido, há pouco (em 1890) inserido nas “Obras Póstumas”; mas também faz referência a documentos que não constam em nenhuma obra da codificação espírita, ou que, de qualquer modo, nelas não foram inseridas. 
Utilizou-se aqui a tradução já consolidada (da Federação Espírita Brasileira) para a língua portuguesa da referida conferência-biografia.  Os trechos considerados relevantes apresentam-se a seguir. 
Uma noite, seu Espírito protetor, Z[éfiro], deu-lhe, por um médium, uma comunicação toda pessoal, na qual lhe dizia, entre outras coisas, tê-lo conhecido numa precedente existência, quando, ao tempo dos Druidas, viviam juntos nas Gálias.  Ele se chamava, então, Allan Kardec, e, como a amizade que lhe havia votado só fazia aumentar, prometia-lhe esse Espírito secundá-lo na tarefa muito importante a que ele era chamado, e que facilmente levaria a termo. 
[...] 
Foi a 30 de abril de 1856, em casa do sr. Roustan, pela médium srta. Japhet, que Allan Kardec recebeu a primeira revelação da missão que tinha a desempenhar.  Esse aviso, a princípio muito vago, foi precisado no dia 12 de junho de 1856, por intermédio da srta. Aline C., médium.  A 6 de maio de 1857, a sra. Cardone, pela inspeção das linhas da mão de Allan Kardec [i.e., via quiromancia], confirmou as duas comunicações precedentes, que ela ignorava.  Finalmente, a 12 de abril de 1860, em casa do sr. Dehan, sendo intermediário o sr. Croset, médium, essa missão foi novamente confirmada numa comunicação espontânea, obtida na ausência de Allan Kardec[5]. 
Assim, também, se deu a respeito do seu pseudônimo.  Numerosas comunicações, procedentes dos mais diversos pontos, vieram reafirmar e corroborar a primeira comunicação obtida a esse respeito [a de Zéfiro, obtida pelas srtas. Baudin]. 
[...]

Adereços Posteriores: 
O autor deste trabalho dá por terminado o elenco de fontes (de seu conhecimento) que podem vir a esclarecer a origem do pseudônimo “Allan Kardec”, bem como as circunstâncias de sua assunção por parte do professor Rivail; quaisquer informações posteriores correm seriamente o risco de não remontarem aos próprios acontecimentos, ou, então, o de os interpretar de modo nebuloso ou equivocado.  Note-se, desde logo, que, mesmo considerando apenas as fontes anteriormente elencadas, há não pequenas contradições; e mais, nota-se uma tendência de “embelezamento”, de “idealização” e, mesmo, de “mitificação” (sobre tais tendências, serão tecidos comentários mais extensos na parte final deste trabalho). 
No entanto, algumas informações posteriores podem ser acrescentadas à investigação até aqui efetuada – não pelo fato de, necessariamente, agregarem mais fontes, mas principalmente como ilustração do continuado processo de agregação de elementos à explicação da origem do pseudônimo do Codificador. 
Quanto a isso, é digno de exame, no entender do autor deste trabalho, dois trechos duma entrevista do pesquisador espírita sr. Eduardo Carvalho Monteiro concedida ao periódico “O Mensageiro” (o texto integral pode ser obtido no endereço http://www.omensageiro.com.br/entrevistas/entrevista-87.htm).  A entrevista trata de vários temas ligados à História do Espiritismo, versando também sobre as (pretensas) encarnações passadas de Rivail, como o druida Kardec (aqui já consta explicitamente o fato de que ele teria sido um druida, algo que, nas quatro fontes históricas anteriormente analisadas, não se encontra), bem como o teólogo e reformador religioso João Huss (1368-1415), considerado um dos precursores da Reforma protestante do séc. XVI. 
[...] 
“O Mensageiro”: Onde consta a afirmação de que Denizard Rivail foi [noutras encarnações] João Huss e, também, Allan Kardec? Há algum livro, mensagem ou registro que afirme que Léon Denis era a reencarnação de Wycliff?
Monteiro: A revelação da encarnação do Prof. Rivail como Allan Kardec, sacerdote druida, surgiu em 1856 pela cestinha escrevente de Caroline Baudin, e a de sua encarnação como João Huss em 1857, pela médium Ermance Dufaux.  As fontes preciosíssimas, esclarece Canuto de Abreu, estavam, em 1921, na Livraria Leymarie, onde ele as copiara em quase sua totalidade.  Passaram em 1925 para a Maison des Spirites, [...] [e foram queimadas] [...] pelos alemães.  Recomendo a leitura de “A Missão de Allan Kardec”, de Carlos Imbassahy, e “Allan Kardec, o Druida Reencarnado”, de minha autoria. 
[...] 
“O Mensageiro”: Será que existe alguma coletânea de mensagens que Allan Kardec recebeu do Além, e que não foram incluídas em nenhum de seus livros e revistas espíritas, à parte de suas obras?
Monteiro: Creio que existiriam muitas mensagens [ainda] inéditas recebidas por Kardec e por seu grupo, se houvesse sido conservado seu acervo, porque as que ele divulgou na Revista Espírita e nos livros foram uma seleção das mensagens recebidas em suas sessões.  Na Revista Espírita de 1914, interrompida pela [Primeira] Guerra, começaram a ser publicadas as cartas de Kardec a outros confrades.  Uma parte do acervo de Kardec e da memória do Espiritismo foi perdida durante a Segunda Guerra, quando os alemães saquearam a Maison des Spirites, em Paris.  Uma parte do acervo de Kardec foi trazido ao Brasil pelo Dr. Canuto de Abreu, mas a ele muito poucas pessoas tiveram acesso, e ele raramente divulgou seus conteúdos.  Hoje permanece mais inexpugnável ainda, conservados [tais documentos de Kardec] pela família do Dr. Canuto.  Que me perdoem a crítica os admiradores do Dr. Canuto e sua família, mas comete-se aí um crime de lesa-humanidade, pois esse acervo não pertence a eles, mas é um patrimônio da humanidade, e deveria estar reproduzido, e à disposição de todos.  Infelizmente, essa é a amarga mensagem final que fica de minha entrevista.  Deixo, no entanto, minha saudação fraterna aos confrades e coloco-me à disposição em outros esclarecimentos em que possa ser útil. 
[...]

De qualquer modo, segundo o depoimento do sr. Eduardo Carvalho Monteiro, haveria, na década de 1930, na Maison des Espirites (a original, e ainda pujante, na rua de Copérnico), inúmeros documentos das origens do Espiritismo na França, da época do próprio Kardec, quiçá vários autógrafos do próprio Codificador, com informações as quais não haviam sido publicadas, ou agregadas às obras da codificação (mais especialmente, às “Obras Póstumas”, lançadas em 1890).  O pesquisador brasileiro Canuto Abreu teria tido acesso a tais documentos, copiando muitos e até mesmo obtendo vários originais. 
Silvino Canuto de Abreu (1892-1980), farmacêutico (Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1909), advogado (Escola de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, 1916) e médico (Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1923), foi um incansável pesquisador e conferencista.  Amealhou, ao que se diz, uma biblioteca pessoal de dez mil volumes, e é considerado como um dos maiores especialistas na História do Espiritismo, tendo viajado à Europa inúmeras vezes e coletado vasta quantidade de material.  Consta inclusive que, estando em Paris pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, teria conseguido, por vias surpreendentes (como será mostrado a seguir) a guarda de material original do próprio Kardec[6].  Com efeito, têm-se as seguintes informações, de Carlos de Brito Imbassahy[7], publicadas no periódico “Mundo Espírita”, do Paraná, aos 31 de agosto de 1980, sob o título “Dr. Canuto de Abreu – Os Tempos Passam”: 
Indo a São Paulo em companhia do Olympio (que fazia vez de meu irmão)[8], e da esposa, fomos almoçar com o dr. Canuto de Abreu; nessa tarde, ele nos levou aos seus arquivos particulares, e nos mostrou um “dossier”, contando-nos a [seguinte] história. 
“Estava na França pouco antes de estourar a Guerra de 1939 quando, intempestivamente, fui procurado por dois cidadãos, que se apresentaram e disseram ali estar por ordem espiritual.  Os cidadãos haviam recebido instrução de seus guias [espirituais] de que deveria vir do Brasil uma determinada pessoa, em tais circunstâncias que coincidiam exatamente com as minhas (dizia o dr. Canuto), e que a esse cidadão [brasileiro] deveriam ser entregues os arquivos particulares do próprio Allan Kardec, pois a Europa iria passar por uma fase conturbada de guerra, e, se esses documentos fossem encontrados, seriam destruídos”. 
Ali estava, diante de mim e de Olympio, a letrinha de Kardec, suas opiniões e um envelope [com os dizeres] “Confidencial – Não Pode ser Publicado”.  Mostrou-me [o dr. Canuto] seu conteúdo, dizendo: 
“Gostaria de doar este acervo à Federação Espírita Brasileira, mas ela é roustainguista e, na certa, não vai admitir que seja ela própria a portadora de documentos que condenam ‘Os Quatro Evangelhos’” (de Roustaing!). 
Disse isso e mostrou-me duas cartas manuscritas onde, por cima, lia-se: 
“Carta enviada ao senhor João Batista Roustaing, cartas essas que são um libelo terrível, no qual acusa o ‘colega’ de controverter a ordem doutrinária, deixando-se envolver por mistificadores, cujo único objetivo era desmoralizar o sistema de comunicação com os mortos”.

Assim sendo, combinando os depoimentos do sr. Eduardo Carvalho Monteiro e do sr. Carlos de Brito Imbassahy, sustenta-se que o pesquisador Silvino Canuto de Abreu, de qualquer modo que fosse (mediante consultas na Maison des Espirites, ou então a partir de informações de particulares), teria tido ainda acesso, em Paris, quer imediatamente antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, quer já durante o início da ocupação nazista da capital francesa (mas, de qualquer modo, antes que desaparecessem, no curso do conflito), a vários documentos acerca da História dos primórdios do Espiritismo, tendo-os não apenas copiado em grande quantidade (cf. Monteiro), mas também obtido a posse de vários originais (cf. Monteiro e Imbassahy).  Tais documentos (quer originais, quer cópias de originais agora desaparecidos) incluiriam tanto informações detalhadas acerca da origem do pseudônimo “Allan Kardec” (cf. Monteiro) quanto observações acerca da validade das doutrinas de Jean-Baptiste Roustaing (cf. Imbassahy). 
De qualquer modo, em sua obra “O Livro dos Espíritos e Sua Tradição Histórica e Lendária” (publicado como folhetim, entre abril de 1953 e junho de 1954, no jornal “Unificação”, órgão da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo), Canuto de Abreu explicitamente endossou a origem do pseudônimo “Allan Kardec” na forma final pela qual é agora comumente propagada na comunidade espírita.  Os trechos relevantes, quanto a isso, são mostrados a seguir (a obra de Canuto Abreu foi escrita como um romance, na mesma forma que, p.ex., a psicografia “Há Dois Mil Anos”). 
[...] 
Certo dia de sessão [comentou o sr. Baudin, pai das médiuns srtas. Baudin], [o espírito] Zéphyr se fez esperar um pouco, e Caroline, com os dedos sobre a “tupia” [i.e., sobre a cesta-pião], aguardava-o cantarolando a Marselhesa.  Ao se manifestar, o Espírito começou a bater, com o bico do lápis sobre a ardósia, o ritmo do Hino Nacional Francês, como a acompanhar a menina, que, assim entusiasmada, entrou a cantá-lo em voz alta, em cooperação com Julie.  Nós acompanhamos em coração a marcha triunfal e, terminado o último verso, o lápis escreveu: “Nosso dia de glória já chegou”.  Não compreendendo o alcance da proposição, que permitia vários sentidos, pedi a Zéphyr que se explicasse.  E o “Roc” [i.e., o lápis acoplado à cesta-pião] rabiscou “Vamos ter afinal o convívio de nosso velho Chefe Druídico”.  Perguntei ao Espírito: — “Aquele que esperavas encontrar em Paris?” Resposta: — “Sim, ele mesmo, em pessoa.  Vais trazê-lo aqui.  Caroline vai atraí-lo…”.  Nosso guia gostava de pilheriar.  Supusemos que seria ali “pretendente” da Menina.  Insisti: “Podes anunciar-me seu nome, para meu governo?” E o “Roc” escreveu, destacando, sílaba por silaba, entre hífens: “AL-LAN –KAR-DEC”.  O nome era tão estranho que continuamos a duvidar da seriedade da comunicação.  Por isso, perguntei: — “Arabismo ou pilhéria?” Resposta: “A Verdade”.  Quando, dias depois, tive a satisfação de convidar o sr. Rivail a freqüentar nossos trabalhos espirituais, eu estava absolutamente longe de imaginar que ia franquear minha casa humilde o antigo Pontífice Druídico que ele foi. 
[...] 
Vou contar-te a história d’O LIVRO [i.e., de “O Livro dos Espíritos”] desde o princípio, diz Caroline [Baudin].  Zéphyr, nosso Espírito Familiar, no início das manifestações, riscava na “tupia” as respostas às consultas dos consulentes.  Na hora das sessões, nossa casa enchia-se de curiosos, apresentados por amigos de papai.  O trabalho realizava-se num ambiente de alegria, sem qualquer formalismo, e dando-se entrada aos retardatários.  Para evitar a fadiga, eu revezava com Julie ou com mamãe.  Durante a escrita na ardósia, reinava relativo silêncio.  Após a leitura da resposta, feita geralmente por papai, seguiam-se os comentários, em voz alta e social, nos mais diversos tons, segundo o espanto de uns e o contentamento de outros.  Zéphyr gostava de pilheriar e alfinetar os consulentes antes de lhes dar conselho.  Recebia os novatos com uma frase amena, a fim de os deixar logo à vontade.  E nunca perdia o ensejo de instruir a sociedade, ainda quando divertia com certas respostas.  Uma noite veio o Professor, com Madame Rivail.  Nosso Guia os recebeu amistosamente, saudando o professor com estas palavras: — “Salve, caro Pontífice, três vezes salve!”.  Lida em voz alta a saudação, todos rimos.  Para nós, Zéphyr estava pilheriando.  Papai, então, explicou ao Professor o costume do Espírito Familiar apelidar quase todos os visitantes.  O sr. Rivail não se agastou, e respondeu ao Guia, sorrindo — “Minha bênção apostólica, prezado filho”.  Nova risada geral.  Zéphyr, porém, respondeu ter feito uma saudação respeitosa, a um verdadeiro pontífice, pois Rivail, havia sido, no tempo de Júlio César, um chefe druídico.  Isso fez minha família simpatizar prontamente com o Professor, visto como, também nós, segundo Zéphyr, havíamos vivido na Gália naquela mesma época; e eu fui druidesa… 
E riu-se com vivacidade. 
[...]

Chega-se, então, finalmente, à “versão atual”, preponderante no meio espírita, acerca da origem do pseudônimo “Allan Kardec”, bem como a respeito das circunstâncias segundo as quais ele teria sido assumido.  “Allan Kardec” seria o nome de Rivail numa encarnação anterior, mais especificamente como um chefe druídico, na península da Armórica (a atual Bretanha), pela época da conquista da Gália por Júlio César (anos 60-50 aC).  Resta agora, enfim, tecer algumas conclusões finais, tendo em vista tudo o que até aqui foi apresentado. 
Conclusões Finais: 
Após a apresentação de todo o material anterior, cujo núcleo representa, cronologicamente, os testemunhos históricos espíritas acerca da origem e das circunstâncias de adoção do pseudônimo “Allan Kardec”, podem enfim ser esboçadas algumas conclusões.  Tendo em vista conflitos internos que permeiam essas mesmas fontes, as conclusões a seguir não podem ser consideradas como definitivas, mas apenas como as mais razoáveis, no atual estágio das investigações. 
Pareceu didático apresentar tais conclusões em duas partes – uma primeira sumarizando a própria viabilidade do pseudônimo como nome “celta”; a segunda examinando, à luz das fontes espíritas, as circunstâncias de seu surgimento. 
Viabilidade “céltica” (ou melhor, “gaulesa”) do pseudônimo “Allan Kardec”: 
O pseudônimo “Allan Kardec” surgiu em 1857, com a publicação de “O Livro dos Espíritos”, a mais antiga obra da codificação espírita kardecista, apresentando-se desde o início, inequivocamente como um “nome celta”, ou melhor, “gaulês”.  Embora os dois qualificativos (“celta” e “gaulês”) se apresentem facilmente como intercambiáveis, tanto então quanto agora, deve-se notar que o primeiro é bastante geral, e o segundo, bastante específico, tanto em termos culturais quanto lingüísticos.  Os “gauleses”, ou “celtas de La Tène”, constituem-se na mais recente das culturas celtas, e também a mais conhecida literariamente, no sentido de que foram os gauleses (“Gallatai” para os gregos, “Galli” para os romanos) que entraram em contato (e em conflito) com os reinos helenísticos e com Roma.  Se se tomar o qualificativo “celta” na sua mais ampla acepção possível (p.ex., considerando que irlandeses e bretões são “celtas”), “Alan Kardec” (apenas com um “l”) é um nome “celta” (mais especificamente, bretão) viável, sendo “Alan” um nome (prenome, primeiro nome) e “Kardec” uma forma do mais comum “Caradec” (apelido, ou nome de família).  Se, contudo, se quiser fazer “Al(l)an Kardec” retroceder a tempos especificamente gauleses, e mais, à Armórica (atual Bretanha) pré-romana, ou na época da conquista romana, tal pretensão é absolutamente inviável.  Inicialmente porque não há nenhum testemunho de “Alan” como nome na época gaulesa, sendo a forma do nome medieval (embora seja de origem celta, apenas séculos depois da época gaulesa é atestado, como nome bastante popular, e especificamente na Bretanha); em segundo lugar, porque a forma “Kardec”, embora inequivocamente celta, e mais, gaulesa, apresenta-se como uma forma medieval tardia do nome próprio “Caratacos”; assim, se houvesse, “em tempos gauleses”, alguém com esse nome, seria chamado “Caratacos”, nunca “Kardec” (ou Caradec, ou Karadog, ou qualquer das várias formas dialetais); e, em terceiro lugar, porque o conjunto “Al(l)na Kardec” jamais poderia ser portado por nenhum gaulês (fosse ou não druida), na Armórica ou em qualquer outro lugar de povoação gaulesa, antes, durante ou logo após a conquista romana, já que forma quer um conjunto de “nome + apelido” (prenome + nome de família), quer um “nome composto” (como, p.ex., “Luís Carlos” em língua portuguesa), sendo que os gauleses não usavam nenhum dessas formas.  Da mesma forma que a antroponímia romana era específica, com seu sistema de tria nomina, também o era a gaulesa, nesse caso bem semelhante à grega, com o conjunto formado por nome e patronínimco (“nome” + “nome do pai”, no genitivo, p.ex., “Carataco, [filho] de Cunobelino”). 
Portanto, no que diz respeito à viabilidade de “Al(l)an Kardec”, ele se mostra viável apenas como um nome medieval tardio, ou moderno, na estrutura “nome” + “apelido” (ou “prenome” + “nome de família”), especificamente para a região da Bretanha.  Apenas isso.  De certo modo, tal constatação fortaleceria a hipótese informada por Anna Blackwell, de que o nome pertencia à família da mãe de Rivail. 
Circunstâncias do Aparecimento e da Adoção do Pseudônimo: 
Portanto (e isso deve ser sempre enfatizado), “Al(l)an Kardec”, como nome gaulês em geral (e “druídico”, em particular) é absolutamente inviável.  Tratando especificamente, agora, das circunstâncias de seu aparecimento, bem como de sua adoção, por parte do até então professor Rivail, a história atualmente tida nos meios espíritas pode ser decomposta, ou separada, cronologicamente, em quatro “níveis” sucessivos de construção: 1) as obras kardecistas oficiais e incontroversas (escritas entre 1857 e 1890); 2) as notas biográficas de Anna Blackwell (1874-75) e as investigações do Conselheiro Aksakov, com as réplicas de Leymarie e da própria Blackwell (1875); 3) A anotação constante em “Le Spiritisme” (1888), bem como a biografia de Kardec de autoria de Henri Sausse (1896); 4) os adereços posteriores, ligados principalmente às averiguações de Canuto de Abreu (década de 1930).  Analisar-se-ão, a partir de agora, cada um desses estágios. 
Primeiro Estágio – As Obras Kardecistas Oficiais e Incontroversas: 
Tais fontes estendem-se desde a publicação da primeira edição de “O Livro dos Espíritos” (1857) até à compilação das “Obras Póstumas” (1890); incluem o necrológio, com muitos dados biográficos, publicado na “Revista Espírita” de maio de 1869, bem como o discurso fúnebre pronunciado por Camille Flammarion sobre o túmulo do Codificador (no dia 2 de abril de 1869)[9].  Em nenhum desses testemunhos se menciona a origem, ou as circunstâncias de adoção, do pseudônimo “Allan Kardec”, e isso é uma constatação de suma importância.  O “nom de plume” havia sido sugerido pelos próprios espíritos; era de origem “gaulesa”; havia sido o de Rivail noutra encarnação.  Eram, assim, circunstâncias extraordinárias, e havia boas razões para que, nas obras kardecistas oficiais, constasse alguma coisa a respeito.  No entanto, não há nada. 
O pseudônimo “Allan Kardec” tinha, certamente, conotações “célticas”; e os druidas, por esposarem, pretensamente, pensamentos reencarnacionistas, e por serem os “sacerdotes” (i.e., os “guias espirituais”) dos “antepassados” dos franceses, os gauleses, eram tidos em alta conta no movimento espírita – nisso, nota-se a herança do “celtismo” típico dos meados do séc. XIX, e, mais especialmente, das idéias de Jean Reynaud (1806-1863)[10].  Essa “celtomania”, de que já se citaram alguns exemplos (e equívocos) neste trabalho (p.ex., à ligação dos “megálitos” com os gauleses e, mais especificamente, com os rituais da “religião druídica”) torna-se evidente na exposição de motivos para a construção do monumento fúnebre “galo-druídico” de Kardec no Père Lachaise, onde seus restos iriam repousar em definitivo, conforme se pode ler na edição da “Revista Espírita” de junho de 1869: 
Na reunião da Sociedade de Paris que se seguiu imediatamente às exéquias do sr. Allan Kardec, os espíritas presentes, membros da Sociedade e outros, emitiram a opinião unânime de que um monumento, testemunha da simpatia e do reconhecimento dos espíritas em geral, fosse edificado para honrar a memória do coordenador de nossa Filosofia.  Um grande número de nossos aderentes da província e do estrangeiro se associaram a este pensamento.  Mas o exame da proposição teve necessariamente de ser retardado, porque convinha verificar primeiro se o sr. Allan Kardec havia feito disposições a tal respeito, e quais seriam essas disposições.  Tudo bem examinado, nada mais se opondo ao estudo da questão, a comissão, depois de madura reflexão, deteve-se, salvo modificação, numa decisão que, permitindo satisfazer ao anseio legítimo dos espíritas, lhe parece harmonizar-se com o caráter bem conhecido do nosso saudoso presidente.  É bem evidente para nós, como para todos que o conheceram, que o sr. Allan Kardec, como Espírito, não se interessa de modo algum por uma manifestação deste gênero, mas o homem se apaga, neste caso, diante do chefe da doutrina, e o exige a dignidade, direi mais, o dever daqueles que ele consolou e esclareceu, que se consagre por um monumento imperecível o lugar onde repousam os seus restos mortais.  Seja qual for o nome que a designou, é fora de dúvida, para todos os que estudaram um pouco a questão, e para os nossos próprios adversários, que a Doutrina Espírita existiu por toda a Antigüidade, e isto é muito natural, pois ela repousa nas leis da natureza, tão antigas quanto o mundo; mas também é evidente que, de todas as crenças antigas, é ainda o Druidismo, praticado por nossos antepassados, os Gauleses, a que mais se aproxima de nossa Filosofia atual.  Também é nos monumentos funerários que cobrem a antiga Bretanha que a comissão reconheceu a mais perfeita expressão do homem e da obra que se tratava de simbolizar.  O homem era a simplicidade encarnada; se a doutrina é, ela própria, simples como tudo quanto é verdadeiro, é tão indestrutível quanto as leis eternas sobre as quais repousa.  O monumento se comporia, pois, de duas pedras de granito bruto, erectas, encimadas por uma terceira, repousando obliquamente sobre as duas primeiras, numa palavra, de um dólmen.  Na face inferior da pedra superior seria gravado simplesmente o nome de Allan Kardec com esta epígrafe: “Todo efeito tem uma causa; todo efeito inteligente tem uma causa inteligente; a potência da causa inteligente está na razão da grandeza do efeito”.  Esta proposição, acolhida por sinais unânimes de assentimento dos membros da Sociedade de Paris, nos pareceu que devia ser levada ao conhecimento dos nossos leitores.  Não sendo o monumento apenas a representação dos sentimentos da Sociedade de Paris, mas dos espíritas em geral, cada um devia ser posto em condições de apreciá-lo e para ele concorrer[11].

O texto acima é extraordinariamente revelador.  Note-se que a forma “druídica” do novo túmulo, a ser construído no Père Lachaise, justificava-se muito mais pela (pretensa) ligação da “doutrina espírita” com o “druidismo reencarnacionista” (e com seus “monumentos druídicos” [sic] representativos, os megálitos, principalmente os megálitos da Bretanha…) do que com qualquer “outra vida” de Kardec como um gaulês (menos ainda como um druida…).  Ora, se, na ocasião, a versão da “vida passada” de Kardec como druida, mesmo como gaulês, já fosse conhecida (e por que não o seria, se verdadeira fosse?), por que não a utilizar para justificar a ereção dum memorial “galo-druídico” para o Codificador? Por que ela nem sequer é mencionada? 
Mais ainda: se houvesse documentos fidedignos, remontando ao próprio Kardec, que ligassem a origem de seu pseudônimo tanto a uma imposição dos “espíritos” quanto a uma (pretensa) reencarnação passada, como gaulês (ou mesmo como druida), por que não foram tais documentos inseridos nas “Obras Póstumas”, coligidas em 1890? Inúmeras anotações de Kardec, referentes a suas sessões com as Baudin e com Japhet, inclusive referentes à sua “missão” e ao livro no qual estava compilando, ordenadamente, os “ensinamentos dos espíritos”, são elencados nas “Obras Póstumas”.  Por que nada é dito, especificamente, acerca da origem do pseudônimo? 
O que se pode concluir disso tudo é que, no “primeiro estágio” da história do pseudônimo “Allan Kardec” – aquele testemunhado pelos dados constantes nas próprias obras kardecistas oficiais e incontroversas – não há absolutamente nenhum sinal de que o “nom de plume” se ligasse a alguma encarnação gaulesa pretérita do Codificador. 
Segundo Estágio – Blackwell e Aksakov: 
O próximo estágio na história do pseudônimo “Allan Kardec” liga-se a testemunhos de pessoas que diretamente tiveram contato com Rivail e com seu grupo (Blackwell, Leymarie), ou que puderam extrair testemunho de quem o teve (Aksakov).  Não há motivo algum para pensar que tanto Anna Blackwell quanto o Conselheiro Aksakov estivessem inventando os dados que publicaram; qualquer que seja a veracidade de tais dados, pode-se-os tomar como aqueles às quais as duas testemunhas tiveram acesso.  Segundo Blackwell (que conviveu com Kardec, e que, nas suas notas biográficas, como afirma, não apenas fez uso de suas lembranças, mas também colheu testemunhos entre os seguidores de Kardec, e, mais especialmente, junto à viúva de Kardec), o pseudônimo “Allan Kardec” foi tomado por Rivail por ser um “antigo nome bretão” da família de sua mãe.  Segundo apurou Aksakov junto a Celina Japhet, os dois nomes, “Allan” e “Kardec”, foram (separadamente) de encarnações pretéritas de Kardec (sem mencionar épocas gaulesas, e muito menos “status” druídico), o primeiro lhe tendo sido revelado pela própria médium Japhet, e o segundo pelo médium Roze. 
Apesar das diferenças, ainda não se fala nem em “gauleses”, nem em “druidas”.  A versão passada a Blackwell (que, provavelmente, tendo em vista o detalhe familiar íntimo, deve ter sido colhida junto à viúva de Kardec, Amélia[12]) é, aliás, de fácil verificação – basta que se procedam às pesquisas genealógicas pertinentes.  Quanto aos dados colhidos por Aksakov, são já de difícil verificação.  De qualquer modo, pode-se, ao menos provisoriamente, tentar uma harmonização: o professor Rivail tinha, de fato, por sua mãe, parentesco bretão (sobrenome “Kardec”, ou, mais provavelmente, “Caradec”); numa sessão qualquer com a médium Japhet, surgiu o nome “Allan”, ou, talvez, “Alain” (forma francesa); numa outra, com o médium Roze (que, talvez, tivesse conhecimento desse detalhe genealógico familiar), o nome “Kardec” (mesmo inconscientemente); juntando as duas informações, e transformando “Alain” em “Allan”, uma grafia mais “bretã”, e, portanto, “celta”, teria nascido “Allan Kardec”, um pseudônimo viável, e até “charmoso” (pela sua “atmosfera celta”), para o professor (agora Codificador) adotar em suas obras de codificação espírita (deixando seu nome verdadeiro, “Rivail”, ligado exclusivamente a suas obras pedagógicas, e a salvo de qualquer confusão que sua incursão num terreno sabidamente polêmico, como o “espiritualismo”, poderia trazer). 
De qualquer modo, o importante a notar, até ao presente estágio, é que, embora o “pseudônimo” já fosse considerado ligado, de algum modo que fosse, a alguma intervenção espiritual, i.e., tendo sido comunicado a Rivail via médium, ou médiuns (Aksakov; também réplica de Leymarie), fosse ou não Rivail descendente, por parte de mãe, de bretões de sobrenome Kardec, ou Caradec (Blackwell), nada se menciona, ainda, duma pretensa encarnação “gaulesa”, e, muito menos, “druídica”. 
Com esse “segundo estágio” termina, na opinião do autor deste trabalho, qualquer reconstituição que possa, de fato, remontar ao próprio Kardec, e, assim, aos fatos “reais”, verdadeiros.  Os próximos dois estágios já se afastam dos documentos remanescentes e, mesmo, das testemunhas oculares, e mostram, nitidamente, os marcos duma tendência cada vez maior à mitificação. 
Terceiro Estágio – “Le Spiritisme” e Biografia de Henri Sausse: 
Nesse estágio, afastamo-nos já quer dos documentos originais incontestes da codificação e dos primeiros tempos da História do Espiritismo, quer dos testemunhos de fontes diretas.  Uma nota no “Le Spiritisme”, de Delanne, em 1888, pela primeira vez (tanto quanto é do conhecimento do autor deste trabalho) informa que o “espírito” Zéfiro (atuante na casa dos Baudin) teria revelado a Rivail que “Allan Kardec” teria sido o seu nome numa encarnação gaulesa passada, e na Armórica (Bretanha).  E, na biografia de Kardec de Henri Sausse (1896), repete-se virtualmente a mesma coisa, acrescentando-se o fato de que “Zéfiro” também se coloca vivendo, com “Kardec”, na mesma época e lugar (foram, assim, companheiros em épocas passadas…). 
O elemento mítico, em gestação, aqui, já é evidente; como se viu, “Allan Kardec” NÃO É, e nem pode ser, um “nome gaulês”; e a ambiência armoricana (bretã) liga-se à atmosfera de “celtismo galo-nacionalista”, que via, ainda, os “gauleses” como “antepassados dos franceses” (e sua “religião druídica” como uma alternativa ao Cristianismo), bem como os megálitos, presentes especialmente na Bretanha, como genuínos monumentos “celtas”, ou “gauleses”.  Se, de fato, os “espíritos” são os responsáveis por tais informações, trata-se de espíritos singularmente mal-informados. 
De qualquer modo, a “história” passa a outro patamar – o pseudônimo não é apenas de origem “espiritual”, mas é ligado a uma encarnação passada de Rivail, como gaulês (ainda não, explicitamente, como “druida”) na mítica e “céltica” Armórica… Note-se especificamente que Sausse, em sua biografia, não pôde fazer remontar sua informação duma passada reencarnação “gaulesa” de Kardec a nenhum documento constante nas “Obras Póstumas”, ou nas obras kardecistas, em geral – a informação “paira no ar”… 
Quarto Estágio – Adereços Posteriores, e Elucubrações Canutianas: 
Com esse estágio, a “história” chega a seu ponto atual – não apenas “Allan Kardec” foi uma encarnação gaulesa passada de Rivail na Bretanha (onde viveu juntamente com Zéfiro), mas tal deu-se especificamente por volta da conquista da Gália por César, nos anos 50 aC, e mais, Kardec teria sido um druida (ou, mesmo, um arqui-druida!).  Para tal, apela-se a documentos vistos e copiados (ou até mesmo adquiridos no original) pelo pesquisador Silvino Canuto de Abreu, em Paris, quer nos fins da década de 1930, imediatamente antes do início da Segunda Guerra Mundial, quer por ocasião do início da ocupação alemã de Paris.  O fato é que todos, ou quase todos, os originais de tais documentos teriam perecido, restando apenas as anotações de Canuto de Abreu. 
A rigor, tais fatos são perfeitamente verificáveis (do mesmo modo que a ascendência bretã de Rivail, por linha materna, mencionada por Anna Blackwell).  Basta que se pesquisem as épocas das viagens, e das permanências, de Silvino Canuto de Abreu em Paris; e que se possa ter acesso aos documentos copiados (bem como aos originais) que o referido pesquisador trouxe da França.  As datas de permanência podem precisar se os dados foram obtidos (e/ou copiados) antes da eclosão da guerra, ou durante o início da ocupação nazista de Paris; e os próprios arquivos do pesquisador podem elucidar se os dados referentes à origem do pseudônimo “Allan Kardec” constam em materiais originais (e, no caso, que tipo de originais) ou se em meras cópias (e, também, em que tipo de cópias).  No atual estágio, tendo em vista, como já mencionado, que esses dados verdadeiramente fantásticos não constam, em absoluto, nos testemunhos dos dois primeiros “estágios” da história do pseudônimo, as informações adicionais agregadas por Canuto de Abreu devem ser vistas, no mínimo, com grande desconfiança. 
O próprio modo pelo qual o sr. Canuto de Abreu as disponibilizou (ao menos, em parte), qual seja, um folhetim, não acrescenta nada à sua veracidade.  Como se pode notar nos trechos citados de sua obra “O Livro dos Espíritos e Sua Tradição Histórica e Lendária” (o título já é, por si só, eloqüente, quanto a isso…), permanece a incoerência de se considerar que “Allan Kardec” fosse um nome “gaulês” válido, quando não o era.  Isso, claro, além da citação a “druidesas”, que não são, em absoluto, mencionadas por nenhuma das fontes antigas, e que somente aparecem, pela primeira vez, em fantasias do séc. IV dC, mais especificamente na “História Augusta” e em citações de nobres gauleses do Baixo Império.  Como se trata dum folhetim, não se pode saber o quanto de informação “verídica” (i.e., baseada nos “documentos” que Canuto pôde trazer de Paris, e/ou nas “anotações” que então efetuou) está contida nessas historietas.  O que se pode dizer, desde logo (e independentemente do que possam vir a revelar os arquivos do pesquisador, quando forem publicados), é que “Allan Kardec” NÃO É um nome “gaulês”, muito menos druídico, e que a menção, na época gaulesa, de “druidesas”, é, no mínimo, anacrônica (mais um sintoma de “celtomania nacionalista”). 
—(*)— 
Damos, enfim, por terminado este trabalho, que procuramos escrever da forma mais cuidadosa possível, com os dados de que dispomos.  Conforme ficou claro, apesar de muitas conclusões já poderem ser extraídas do material disponível, seria interessante que novas investigações pudessem esclarecer alguns pontos duvidosos.  Uma pesquisa genealógica acerca da origem da família da mãe de Rivail, bem como a publicação dos arquivos trazidos de Paris pelo pesquisador Silvino Canuto de Abreu, seriam, quanto a isso, os próximos passos.  Mas isso deixamos a outros pesquisadores.

[1] Obviamente, sabia-se acerca das migrações britânicas para a Armórica a partir do séc. V dC, mas isso era visto apenas como o reforço duma “tradição celta”, ou melhor, “gaulesa”, ininterrupta na região.
[2] A pequena biografia de Kardec, ou melhor, o elogio fúnebre, que consta na “Revista Espírita” de maio de 1869, logo após a sua morte (ocorrida aos 31 de março daquele ano), não menciona absolutamente nada a respeito da origem do pseudônimo.  Nem há nenhuma menção a respeito na introdução de “O Livro dos Espíritos”, quer na primeira edição, de 1857, quer na 2ª edição, que tornar-se-ia a canônica, de 1860.  Também não há, quanto a isso, nenhuma informação no discurso (que incorpora algumas notas biográficas) que Camille Flammarion pronunciou sobre o túmulo de Kardec, aos 2 de abril de 1869, por ocasião de seu primeiro sepultamento, no cemitério de Montmartre).
[3] Não foi possível ao autor deste trabalho obter o texto original, apesar de todas as suas tentativas; a fonte de tal informação encontra-se em “Laboratories of Faith: Mesmerism, Spiritism, and Occultism in Modern France”, James Warne Monroe, 2008, Cornell University Press, págs. 101-102.
[4] Henri Sausse (1851-1928), lionês como Kardec, pesquisador e ativo propagador espírita, ele mesmo médium, foi o criador da Federação Espírita Lionesa.  Desde 1887 esteve muito ligado, tanto por laços de crença quanto de amizade, a Léon Denis; tal ligação possibilitou-lhe acesso a várias informações e documentos, que, além de suas próprias investigações, permitir-lhe-iam compor a biografia de Kardec.
[5] Essas três comunicações (bem como várias outras, estendendo-se de 11 de dezembro de 1855 a 4 de julho de 1868) constam nas “Obras Póstumas”.
[6] Outra versão, mais verossímil, sustenta que, nos primeiros tempos da ocupação alemã de Paris, como cidadão dum país então ainda neutro (e encontrando-se, assim, no geral, livre de revistas pessoais, ou de buscas domiciliares), Canuto de Abreu tornou-se depositário de documentos históricos até então albergados na Maison des Espirites, que lhe teriam sido confiados por confrades franceses.  A verificação dos fatos, aqui, é relativamente simples, desde que se conheçam com exatidão as datas das viagens de Canuto de Abreu à França, bem como os períodos de sua permanência lá.
[7] Carlos de Brito Imbassahy (1883-1969) foi advogado e jornalista, e também escritor e pesquisador espírita.  Inicialmente promotor público na Bahia, seguiu depois carreira de estatístico no Ministério da Fazenda, no Rio de Janeiro, até à sua aposentadoria.
[8] Trata-se do médium Olympio da Silva Campos (1918-1976).
[9] Allan Kardec morreu aos 31 de março de 1869, sendo enterrado aos 2 de abril no cemitério de Montmartre (nessa ocasião, Flammarion discursou).  Com a (virtual) conclusão do novo monumento fúnebre, de tipo “galo-druídico”, no cemitério de Père Lachaise, os restos de Kardec foram exumados aos 29 de março de 1870 e então transferidos e novamente enterrados no local onde, até hoje, se encontram.  O monumento dolmênico do Père Lachaise foi inaugurado solenemente aos 31 de março de 1870, por ocasião do primeiro aniversário da morte do Codificador.
[10] Veja-se, quanto a isso, o artigo “Druidisme”, que Reynaud escreveu para a “Encyclopédie Nouvelle”, e que foi reeditado, em 1847, na sua obra “Considérations sur l’esprit de la Gaule”.  As idéias filosófico-religiosas de Reynaud repousavam, basicamente, em dois pilares, a pluralidade dos mundos habitados e a reencarnação (ligada especialmente à antiga “religião gaulesa”, que caberia à “nova França”, liberta das superstições nas quais a havia lançado o triunfo do Cristianismo e, principalmente, a Igreja, restaurar).  As almas, num contínuo processo de aprimoramento, i.e., de “evolução”, passavam, ao longo de suas existências materiais, de “esferas” (i.e., “planetas”) menos evoluídas para as mais evoluídas.
[11] Note-se que o “monumento dolmênico” de Kardec, em sua forma final, apresentou algumas variações com relação a esse primeiro esboço, com quatro pedras, e não três, o que o torna, por assim dizer, um “pseudo-dólmen”.  Imperativos de construção devem ter ditado as modificações.
[12] Amélie Gabrielle Rivail, née Boudet (1795-1883), esposa de Kardec.  Filha única, era professora diplomada, e casou-se com Rivail em 1832.

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